Ao trazer a lume o clássico de Franz von Liszt na coleção História do Direito Brasileiro, o Senado Federal e o Superior Tribunal de Justiça parecem, à primeira vista, ter incorrido em curiosa extravagância. O que faz um professor alemão, catedrático da Universidade de Berlim, em companhia de ilustres autores pátrios da magnitude de José de Alencar, Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua e Tobias Barreto, entre outros?
Não, não houve qualquer impropriedade. O Tratado de Direito Penal allemão, de Franz von Liszt, publicado em 1881, é livro essencial que ultrapassou em muito as fronteiras da Alemanha. A exemplo da preciosa contribuição de seu primo e homônimo húngaro para a música clássica, a obra do jurista nascido em Viena elevou-se a patrimônio universal. Liszt dedicou a vida ao estudo dos delitos e das penas, e o presente livro é mostra de seu legado jurídico.
A leitura do Tratado de Direito Penal confirma a forte influência dos doutrinadores alemães na consolidação do Direito Penal brasileiro. Na introdução, minuciosa e didática, Liszt desce a detalhes da história do Direito Penal. Cita as fontes do Direito romano, mostra a evolução do Direito germânico e ressalta o sopro liberal dos filósofos e da Revolução Francesa. Identifica, enfim, raízes que são comuns a nós, brasileiros.
O primeiro volume aborda em profundidade a teoria geral do delito. Na exposição, clara e objetiva, ganha destaque a visão crítica de Liszt sobre o trabalho de outros notáveis contemporâneos. Os conceitos do crime e da pena são desenvolvidos com rigor e maestria, sob influência marcante da teoria causalista.
Em franca oposição ao uomo delinquente e à preconceituosa antropometria criminal de Lombroso, assoma na visão moderna de Liszt o predomínio das causas sociais do delito. A criminalidade é determinada pelas circunstâncias sociais e econômicas; nunca por fatores anatômicos é fisiológicos. As sociedades geram os criminosos que elas merecem. E, para evitar os delitos, é preciso determinar e atacar suas causas sociais.
Além da competente exposição doutrinária, Liszt permite-nos conhecer personagens que marcaram o Direito Penal, como os juristas saxônicos do século XVII. Um deles, Benedikt Carpsov, “distinto pela sua capacidade científica, grande instrução e larga experiência, imprimiu durante um século o cunho do seu espírito sobre a justiça criminal da Alemanha”. O rigor de Carpsov fez história: com seu voto, concorreu para 20 mil sentenças de morte.
O segundo volume traz os crimes em espécies. A exemplo do ordenamento dos tipos penais no Direito brasileiro, aborda, inicialmente, os crimes contra o corpo e a vida, passa pelos crimes contra os bens incorpóreos (por ex., os delitos contra a honra), até chegar aos crimes contra os direitos reais e, finalmente, no livro segundo, aos crimes contra o Estado e contra a administração pública. Alguns tipos mantêm-se em plena eficácia, enquanto outros, como o duelo, caíram em desuso.
Em seu magnífico prefácio, o tradutor, José Hygino Duarte Pereira (1847-1901), ministro do Supremo Tribunal Federal, ressalta que o Tratado de Direito Penal, publicado pela primeira vez em 1881, ganhou sete edições até 1895, “sempre aperfeiçoadas pelo autor de modo a acompanhar o progresso da ciência e a pôr o livro ao corrente da literatura e da jurisprudência”.
A tradução de José Hygino merece comentário à parte. Graças à iniciativa do ilustríssimo ministro, a portentosa obra clássica tornou-se acessível aos estudiosos brasileiros. Por sinal, a versão para a língua portuguesa foi autorizada pelo próprio Franz von Liszt.
Jurista e político, José Hygino (foi senador, por Pernambuco, no Congresso Constituinte de 1891) é motivo de orgulho para o Direito brasileiro. Seu prefácio enriquece o livro de Liszt. Nas críticas que faz ao tipo antropológico criado por Lombroso, encerra toda e qualquer polêmica: “Há uma forte proporção de criminosos em que tais caracteres não se notam, e, por outro lado, esses caracteres podem aparecer e de fato aparecem também em indivíduos que são honestos ou que pelo menos nunca delinqüiram.”
Há que destacar também a preocupação de José Hygino com as causas sociais do delito, quando ele praticamente endossa as idéias de von Liszt. “Remediai as circunstâncias econômicas desfavoráveis e salvareis ao mesmo tempo o futuro das novas gerações”, afirma, no prefácio, o honrado homem público, que se destacou tanto no Império quanto nos primórdios da República. No limiar do século 21, nada mais pertinente e atual do que a opinião do ministro José Hygino.
Seria sinal de presunção e atrevimento alongar-me nesta introdução. Mais do que isso, seria temerária, de minha parte, qualquer tentativa de ombrear-me com o talento e a cultura jurídica de José Hygino Duarte Pereira. Sua apresentação, de dezembro de 1898, é antológica – e sua tradução também.
Encerro por aqui meus comentários, certo de que o Direito brasileiro sai engrandecido com a reedição da obra do alemão Franz von Liszt.
Prefácio
Ministro Edson Vidigal
Presidente do Superior Tribunal de Justiça
Roberto Parentoni

Roberto Parentoni

Dr. Roberto Parentoni é advogado criminalista desde 1991 e fundador do escritório Parentoni Advogados. Pós-graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, é especialista em Direito Criminal e Processual Penal, com atuação destacada na justiça estadual, federal e nos Tribunais Superiores (STJ e STF). Ex-presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Defesa (IBRADD) por duas gestões consecutivas, é também professor, autor de livros jurídicos e palestrante, participando de eventos e conferências em todo o Brasil.