Informativo STJ – Inquérito Policial. Reconhecimento fotográfico de pessoa. Inobservância do procedimento previsto no art. 226 do CPP. Prova inválida como fundamento para condenação. Necessidade de evitar erros judiciários.

Informações

Informativo nº 0684

Publicação: 5 de fevereiro de 2021.

HC 598.886-SC, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 27/10/2020, DJe 18/12/2020

Posicionamento STJ (5ª Turma também adotou tal tese, ver ementa abaixo)

O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.

Segundo estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis.

O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de “mera recomendação” do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório.

O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato.

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Processo HC 652284 / SC HABEAS CORPUS 2021/0076934-3

Relator(a): Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA (1170)

Órgão Julgador: T5 – QUINTA TURMA

Data do Julgamento: 27/04/2021

Data da Publicação/Fonte: DJe 03/05/2021

Ementa

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. ROUBO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO E PESSOAL REALIZADOS EM SEDE POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 226 DO CPP. INVALIDADE DA PROVA.

MUDANÇA DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL SOBRE O TEMA. AUTORIA ESTABELECIDA UNICAMENTE COM BASE EM RECONHECIMENTO EFETUADO PELA VÍTIMA. ABSOLVIÇÃO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO, DE OFÍCIO.

1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova

jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as

hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio

constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação

cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante

ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do

paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas

corpus. (AgRg no HC 437.522/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA

TURMA, julgado em 07/06/2018, DJe 15/06/2018)

2. A jurisprudência desta Corte vinha entendendo que “as disposições

contidas no art. 226 do Código de Processo Penal configuram uma

recomendação legal, e não uma exigência absoluta, não se cuidando,

portanto, de nulidade quando praticado o ato processual

(reconhecimento pessoal) de forma diversa da prevista em lei” (AgRg

no AREsp n. 1.054.280/PE, relator Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR,

Sexta Turma, DJe de 13/6/2017).

Reconhecia-se, também, que o reconhecimento do acusado por

fotografia em sede policial, desde que ratificado em juízo, sob o

crivo do contraditório e da ampla defesa, pode constituir meio

idôneo de prova apto a fundamentar até mesmo uma condenação.

3. Recentemente, no entanto, a Sexta Turma desta Corte, no

julgamento do HC 598.886 (Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe de

18/12/2020, revisitando o tema, propôs nova interpretação do art.

226 do CPP, para estabelecer que “O reconhecimento de pessoa,

presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito

policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria

delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do

Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas

colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla

defesa”.

4. Uma reflexão aprofundada sobre o tema, com base em uma

compreensão do processo penal de matiz garantista voltada para a

busca da verdade real de forma mais segura e precisa, leva a

concluir que, com efeito, o reconhecimento (fotográfico ou

presencial) efetuado pela vítima, em sede inquisitorial, não

constitui evidência segura da autoria do delito, dada a falibilidade

da memória humana, que se sujeita aos efeitos tanto do esquecimento,

quanto de emoções e de sugestões vindas de outras pessoas que podem

gerar “falsas memórias”, além da influência decorrente de fatores,

como, por exemplo, o tempo em que a vítima esteve exposta ao delito

e ao agressor; o trauma gerado pela gravidade do fato; o tempo

decorrido entre o contato com o autor do delito e a realização do

reconhecimento; as condições ambientais (tais como visibilidade do

local no momento dos fatos); estereótipos culturais (como cor,

classe social, sexo, etnia etc.).

5. Diante da falibilidade da memória seja da vítima seja da

testemunha de um delito, tanto o reconhecimento fotográfico quanto o

reconhecimento presencial de pessoas efetuado em sede inquisitorial

devem seguir os procedimentos descritos no art. 226 do CPP, de

maneira a assegurar a melhor acuidade possível na identificação

realizada.

Tendo em conta a ressalva, contida no inciso II do art. 226 do CPP,

a colocação de pessoas semelhantes ao lado do suspeito será feita

sempre que possível, devendo a impossibilidade ser devidamente

justificada, sob pena de invalidade do ato.

6. O reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e

deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que

possível. E, no caso de uma ou ambas as formas de reconhecimento

terem sido efetuadas, em sede inquisitorial, sem a observância

(parcial ou total) dos preceitos do art. 226 do CPP e sem

justificativa idônea para o descumprimento do rito processual, ainda

que confirmado em juízo, o reconhecimento falho se revelará incapaz

de permitir a condenação, como regra objetiva e de critério de

prova, sem corroboração do restante do conjunto probatório,

produzido na fase judicial.

7. Caso concreto: situação em que a autoria de crime de roubo foi

imputada ao réu com base exclusivamente em reconhecimento

fotográfico e pessoal efetuado pela vítima em sede policial, sem a

observância dos preceitos do art. 226 do CPP, e muito embora tenha

sido ratificado em juízo, não encontrou amparo em provas

independentes.

Configura induzimento a uma falsa memória, o fato de ter sido o

marido da vítima, que é delegado, o responsável por chegar à

primeira foto do suspeito, supostamente a partir de informações

colhidas de pessoas que trabalhavam na rua em que se situava a loja

assaltada, sem que tais pessoas jamais tenham sido identificadas ou

mesmo chamadas a testemunhar.

Revela-se impreciso o reconhecimento fotográfico com base em uma

única foto apresentada à vítima de pessoa bem mais jovem e com

traços fisionômicos diferentes dos do réu, tanto mais quando, no

curso da instrução probatória, ficou provado que o réu havia se

identificado com o nome de seu irmão.

Tampouco o reconhecimento pessoal em sede policial pode ser reputado

confiável se, além de ter sido efetuado um ano depois do evento com

a apresentação apenas do réu, a descrição do delito demonstra que

ele durou poucos minutos, que a vítima não reteve características

marcantes da fisionomia ou da compleição física do réu e teve suas

lembranças influenciadas tanto pelo decurso do tempo quanto pelo

trauma que afirma ter sofrido com o assalto.

8. Tendo a autoria do delito sido estabelecida com base unicamente

em questionável reconhecimento fotográfico e pessoal feito pela

vítima, deve o réu ser absolvido.

9. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para

absolver o paciente.

Fonte: Portal STJ – Superior Tribunal de Justiça

Roberto Parentoni

Roberto Parentoni

Dr. Roberto Parentoni é advogado criminalista desde 1991 e fundador do escritório Parentoni Advogados. Pós-graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, é especialista em Direito Criminal e Processual Penal, com atuação destacada na justiça estadual, federal e nos Tribunais Superiores (STJ e STF). Ex-presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Defesa (IBRADD) por duas gestões consecutivas, é também professor, autor de livros jurídicos e palestrante, participando de eventos e conferências em todo o Brasil.