Cristo perante Pôncio Pilatos.
1881. Por Mihály Munkácsy, atualmente no Museu d’Orsay, em Paris.

“No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite de quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer da sexta-feira subsequente, foi tumultuário, extrajudicial, e atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinédrio, foi o primeiro simulacro de forma judicial, o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia.

Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do direito.

O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o interroga Annás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir; e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: “Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas.

Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que eu lhes houver dito”. Era o apelo às instituições hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores, não podia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a eles os seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal; “se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates?

Annás, desorientado, remete o preso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, ainda assim, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo. Perante este, já muito antes descobrira o genro de Annás a sua perversidade política, aconselhando a morte de Jesus, para salvar a nação. Cabe-lhe agora levar a sua própria malignidade, “cujo resultado foi à perdição do povo, que ele figurava pensou”.

A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas faltas, aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem lhes não acharam a culpa que buscavam. Jesus calava Jesus autem tacebat. Vão perder os juízes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás, em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele que a não renegara vê-se declarar culpado de crime capital: Reus est mortis. “Blasfemou! Que necessidade temos mais de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia”. Ao que clamaram os circunstantes: “É réu de morte”.

Repontava a manhã, quando à sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito da competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juízes legais. Mas juízes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunais que se conchavam de vésperas nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.

Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis, não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juízes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livre, para condenar ou absolver. “Que acusação trazeis contra esse homem?”. Assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica ainda hoje rege a terra civilizada. “Se não fosse um malfeitor, não t’o teríamos trazido”, foi à insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo de que não conhecera, pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: “Tomai-o, julgai-o segundo a vossa lei”. Mas, replicam os judeus, bem sabes que “não nos é lícito dar a morte a ninguém”. O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.

Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, sendo de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que se inculca filho de Deus; é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo frustra, ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. “Ao mundo vim”, diz ele, “para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade há de escutar a minha voz”. A verdade? “que é a verdade?” pergunta, definindo-se, o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a da inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas almas, onde reina o poder absoluto das trevas. “Não acho delito a este homem”, disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.

Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão de sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde a Galiléia. Ora, acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetraca da Galiléis, Herodes Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflada pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o fórum originis do Nazareno. Pilatos envia o réu a Herodes, lisongeando-lhe com essa homenagem à vaidade. Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et facti sunt amici Herodes et Pilatos in ipsa die; nam antea inimici erant ad invencem. Assim se reconciliavam os tiranos sobre os despojos da justiça.

Mas, Herodes também não encontra por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos, que reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava. Nullum causam invenio in homine ipso ex his, in quibus eum accusatis. O clamor da turba recrudesce. Mas Pilatos não se desdiz. De sua boca irrompe a quarta defesa de Jesus: “Que mal fez ele? Quid enim mali fecit iste? Fsdfsd Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta ainda: “Crucificareis o vosso rei?” A resposta da multidão em grita foi o raio, que desarmou as evasivas de Pilatos: “Não conhecemos outro rei, senão César”. A esta palavra, o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador da província romana. O monstro de Caprea, traído, consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado de lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo:? “Sou inocente do sangue deste justo”.

E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não compromete. A história premiou dignamente esse modelo de suprema covardia na justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de tudo em perpétua infâmia o sangue do justo.

De Annás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pelas facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua inconsciência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue que vão derramar, do atentado que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.

Mas, não ficou aí – sabe-se – o desrespeito ao salutar princípio do “Deuteronômio”, pois a verdade é que, através dos tempos, aqui e alhures, os simulacros de defesa e julgamentos, como aqueles que, recentemente, encheram de pavor e revolta a população cubana, em face do “paredão”.

Fonte: Livro de Serrano Neves, Tática e Técnica da Defesa Criminal

 

Roberto Parentoni, advogado criminalista

Roberto Parentoni

Roberto Parentoni

Dr. Roberto Parentoni é advogado criminalista desde 1991 e fundador do escritório Parentoni Advogados. Pós-graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, é especialista em Direito Criminal e Processual Penal, com atuação destacada na justiça estadual, federal e nos Tribunais Superiores (STJ e STF). Ex-presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Defesa (IBRADD) por duas gestões consecutivas, é também professor, autor de livros jurídicos e palestrante, participando de eventos e conferências em todo o Brasil.