Por: Luca Parentoni, Advogado Criminalista

 

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão de 12 de dezembro de 2023, por maioria, reconheceu a aplicação do princípio da insignificância a uma tentativa de furto de oito frascos de xampu, que, somados, dão um total de R$ 93,00.

Gostaria, primeiro, de destacar a atuação da Defensoria Pública do Estado de Goiás, que não mediu esforços na esfera recursal para reverter uma decisão não adequada às circunstâncias do caso. Judiciário só é chamado a decidir por quem tem coragem para reivindicar o direito. E, em segundo lugar, ressaltar o belo voto vencedor da Ministra Daniela Teixeira, que, apreendendo o correto sentido do Direito Penal, foi capaz de proferir um voto político-criminalmente apropriado.

A Ministra superou a argumentação contrária de que a habitualidade da ré – que é tecnicamente primária – em delitos da mesma natureza seria incompatível com a aplicação do princípio da insignificância, afirmando que “a reiteração, em outras palavras, é incapaz de transformar um fato atípico em uma conduta com relevância penal. Repetir vária vezes algo atípico não torna esse fato um crime”. É de notar, inclusive, que os bens foram integralmente restituídos à vítima e, para além disso, a Ministra também verificou que aqueles requisitos exigidos pelas nossas Cortes Superior e Suprema para aplicação da insignificância – mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da lesão jurídica – estavam presentes no caso.

A importância desta decisão vai em duas direções. Primeiro, como dissemos, é a mais adequada ao caso concreto porque se trata de produtos de higiene pessoal e de baixo valor, já que não configura nem 10% do salário mínimo. Por sua natureza subsidiária e fragmentária, o direito penal nada tem a dizer sobre esse fato, a não ser dar o protagonismo a outros ramos do direito mais aptos. Essa pessoa precisa não de restrição de liberdade, mas de acolhimento e – numa sociedade capitalista como a nossa – ter capacidade de compra de mercadorias de necessidades mais básicas: duas tarefas que o direito penal é incapaz de cumprir.

Por outro lado, o voto da Ministra Daniela também joga luz no tratamento desigual e assistemático que nosso direito penal dá aos delitos patrimoniais. Sabemos todos que aos crimes materiais contra a ordem tributária é dado a possibilidade de extinção da punibilidade, a qualquer tempo, se houver pagamento integral do crédito tributário. Esse mesmo tratamento – que, apesar da sua tendência de tornar o processo penal como mecanismo de cobrança de dívida, parece ainda levar em conta a subsidiariedade do direito penal – não é dado a delitos patrimoniais sem violência como o furto, nos quais a coisa pode perfeitamente ser restituída e que representa boa parte de nossa população carcerária.

O cenário é ainda pior se levarmos em consideração que o Supremo Tribunal Federal reconhece a insignificância do não pagamento de tributos federais no valor de até R$ 20.000,00. No âmbito estadual, o Estado de São Paulo, por exemplo, no art. 17 da Lei nº 16.498, de 18 de julho de 2017, autoriza a não propositura de ações fiscais para a cobrança de débitos cujos valores não excedam 1.200 Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESPs), que equivalem, em 2024, a R$ 42.432,00[1]. São benefícios que não exigem restituição alguma de qualquer valor.

Agora, casos como esse de habitualidade ou reiteração delitiva em espécies patrimoniais, sobretudo o furto – ao invés de indicar a justificativa para a incidência do direito penal –, talvez seja sintoma da existência de um grupo de casos que não encontra solução a partir dos requisitos jurisprudenciais mencionados. De fato, a reincidência da conduta delitiva não é capaz de tornar uma conduta materialmente atípica em típica, mas não é o fundamental ou essencial. Isso porque, nesses casos, a incidência do direito penal não possibilita ao sujeito ter acesso a mercadorias necessárias, apenas concede uma passagem à prisão. A pena suprime desse sujeito algo que ele já não possui – a liberdade – e, ao mesmo tempo, oferece algo que não o liberta – a reclusão.

Podemos caracterizar esse grupo de casos pela incapacidade econômica do sujeito ter acesso, através da compra, a mercadorias de primeira necessidade, principalmente as de higiene pessoal e as alimentícias. Todo ser social tem direito à propriedade daquela parte da natureza que lhe permite atender suas necessidades mais básicas, ainda que o sistema produtivo imperante transforme tudo em mercadorias acessíveis apenas pela compra. Se tal sistema não consegue garantir que todos tenham a capacidade de acesso à essas mercadorias, não há nada que autorize a utilização do direito penal como instrumento de negação de necessidades propriamente humanas. É como negar a gravidade!

É somente se levarmos em consideração a base material da sociedade – estrutura que, em alguma medida, condiciona-nos – que poderemos oferecer um critério científico e com capacidade de rendimento prático para lidar com esse grupo de casos. Deve-se agregar àqueles quatro requisitos para aplicação do princípio da insignificância mais um, o qual deve funcionar como um topos e deve ser confirmado para que se possa passar à análise dos outros: capacidade de compra de mercadorias para subsistência digna.

Espera-se que com este novo critério a jurisprudência possa ter em mãos uma ferramenta dogmática adequada para correção de falhas sistêmicas e não só com grande capacidade de rendimento para esse grupos de casos, mas, também, crítica frente a uma realidade material que impõe decisões político-criminais que a combata

[1] Índice pode ser encontrado no site https://portal.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Indices.aspx.

Roberto Parentoni

Roberto Parentoni

Dr. Roberto Parentoni é advogado criminalista desde 1991 e fundador do escritório Parentoni Advogados. Pós-graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, é especialista em Direito Criminal e Processual Penal, com atuação destacada na justiça estadual, federal e nos Tribunais Superiores (STJ e STF). Ex-presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Defesa (IBRADD) por duas gestões consecutivas, é também professor, autor de livros jurídicos e palestrante, participando de eventos e conferências em todo o Brasil.